O lobby dos médicos

A Maria é obstetra e tem contrato a tempo inteiro no SNS. O ordenado mensal bruto é de 3000 euros. Não tem filhos e é solteira, pelo que é-lhe feita uma retenção na fonte de IRS de 27%.[1]. Nos últimos meses, a necessidade de contratar "tarefeiros" por parte do SNS, tem vindo a originar propostas de trabalho em prestação de serviços, para além do horário normal, com valores que vão variando, mas que podemos dizer que rondam os 50 euros.

Ora bem, 50 euros por hora, se fizesse 35 horas por semana: (50€ × 35 h × 48 semanas) / 12 = 7000 euros mensais. Mais do dobro do que recebe atualmente, que são 3000 euros!

Então, como é possível termos urgências encerradas, enormes listas de espera para consultas e cirurgias e um caos instalado no SNS? Porque é que não há médicos suficientes que se sintam aliciados a receber esta remuneração extra? Vamos ver se nos esquecemos de alguma coisa.

Em primeiro lugar, esquecemo-nos que o valor total não deve ser dividido por 12 meses, mas sim por 14. Já baixamos para 6000 euros mensais. Em segundo lugar, estamos a considerar que a Maria, caso decida aceitar uma proposta de realizar esta prestação de serviços, não irá trabalhar mais 35 horas. Consideremos cerca de um terço, ou seja, 12 horas extra. Passará então de um rendimento anual bruto de 42 000 euros para 70 800: mais 28 800. Vamos agora ao terceiro ponto: este acréscimo de rendimento vai obrigar a pagar IRS a uma taxa de 43,5% sobre 6033 e de 45% nos restantes 22 757: 12 870 euros. E ainda 11% para a Segurança Social, ou seja, 2880. Portanto, o acréscimo de rendimento não vai ser de 28 800, mas sim de 12 760 - apenas 44%, pois o resto vai para o Estado.

Afinal, o Estado não vai pagar 50 euros à Maria, mas apenas 22 euros, pois o resto vai novamente para os cofres do Estado. Mas 22 euros é ou não uma boa remuneração horária? Para muitas pessoas, sim, é uma boa remuneração horária. Principalmente para quem recebe esse valor num trabalho a tempo inteiro. É o equivalente a receber 1885 euros "limpos".

Mas não é o caso da Maria. A Maria já tem um trabalho a tempo inteiro. Essas horas extra representam um sacrifício adicional que a obrigam a abdicar de horas de descanso, de lazer e de convivência com família e amigos.

Mas há ainda outra variável muito importante a ter em conta: a Maria teve de estudar até aos 31 anos para poder exercer esta profissão; a Maria sacrificou-se muito para poder exercer obstetrícia. Para além disso, a Maria também tem capacidades acima da média, pois não é qualquer pessoa que consegue ser obstetra. É natural que a sua remuneração também deva ficar acima da média.

E isto leva-nos para outra questão: a carreira e o reconhecimento do desempenho dos médicos. A progressão na carreira tem sofrido bloqueios, as competências adicionais obtidas em novas formações (a expensas próprias) não são reconhecidas, as chefias estão de pés e mãos atados para poder gerir as pessoas...

Para quê ficar preso a um compromisso que proporciona um rendimento mensal líquido de 2000 euros, quando pode ganhar 3350, caso opte por se dedicar a ser uma "tarefeira"? E como fica a motivação da Maria ao fazer estas contas?

Portanto:

1. Vale a pena o sacrifício das horas extraordinárias, para quem já tem um horário de trabalho completo?

2. Não deveríamos ter uma carreira para estas profissões que reconhecesse o seu mérito, em vez de andarmos a aplicar pensos rápidos para curar uma hemorragia?

3. Será que alguns os médicos começam a pensar trocar a carreira pela realização de prestação de serviços?

No fim de semana de 23-24 de julho estão previstos os encerramentos das urgências de nove hospitais a nível nacional. Não é de admirar que, não havendo médicos residentes em Portalegre ou Beja, os que vivem fora dessas zonas prefiram optar por realizar uma prestação de serviços em Braga ou Lisboa. E estes hospitais fecham porque não vale a pena ir para lá. Simplesmente, porque há alternativas preferíveis. Alternativas essas, proporcionadas pelo próprio SNS.

Para quem julga que o problema do SNS se deve ao Lobby dos médicos, fica agora a perceber que os médicos não andam a tomar posições concertadas, apenas andam a responder aos estímulos do SNS.

A ministra da saúde acabou de dizer que vai fazer tudo que estiver ao alcance dela para reverter estas situações. Senhora ministra, nós também. Até já fomos comprar um terço novo e mandámo-lo benzer. Pode ser que não haja mais nenhum parto no passeio à porta do Hospital.

[1] Acresce 11% para a Segurança Social. Adicionando 100 euros mensais (11 meses) de subsídio de alimentação, fica com 27 140 euros por ano, portanto, o equivalente a 2260 por mês.

Mário Joel QueirósDocente do Ensino Superior nas áreas de Economia e Finanças,

e Elisabete Gonçalves, médica ginecologista obstetra

in Dinheiro Vivo, Lynk

22-Jul-2022

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